quarta-feira, 20 de março de 2013

A participação social na segurança pública: o caso da Audiência Pública proposta pelo GT do combate ao genocídio da população negra


Pedro Aguerre*
A crise na área da segurança pública foi um dos temas mais dramáticos durante todo o ano passado na vida da cidade de São Paulo, na região metropolitana e em outras regiões do Estado, culminando com a destituição do Secretário anterior e a nomeação de um novo Secretário de Segurança Pública, o Dr. Fernando Grella Vieira, em novembro, e a substituição da cúpula dirigente das polícias.
Uma das explicações para a terrível crise teria sido um conjunto de situações de confronto envolvendo Polícia Militar e crime organizado, gerando um trágico e lamentável círculo vicioso, uma escalada de violência que, envolvendo ações violentas de lado a lado gerou os conhecidos assassinatos de policiais, as quais, segundo evidências documentadas pela imprensa, levaram a ações de represália, com homicídios múltiplos de jovens nas periferias, havendo fortes evidências de atuação de grupos de extermínio e de violência cometida pelas forças policiais, com ou sem uniforme. A situação lembrou outras situações de crise vividas anteriormente, como aquela chamada de “Os Crimes de Maio”, de 2006, que deu origem ao movimento Mães de Maio, atingindo a região da Grande São Paulo e a Baixada Santista, quando mais de 500 civis foram mortos, segundo dados da própria Secretaria de Segurança Pública. Em 2010, outra escalada, também envolvendo violência policial, e homicídios e chacinas nas periferias, com indícios de execuções extrajudiciais. Dossiês sobre a violência institucional foram encaminhados para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, órgãos internacionais, nacionais e estaduais, os quais reconheceram os abusos, pedindo transformações profundas na área.
Em todos estes casos, um dos aspectos mais estudados e denunciados, é que a violência policial não é suficientemente apurada e combatida, não só pela fragilidade dos órgãos de controle social, como, entre outros fatores, pela histórica vigência do instituto jurídico intitulado “Autos de resistência seguida de morte”, quando a ação policial leva ao resultado da morte de civis. Diversos estudos constataram, em muitas das situações em que as mortes foram causadas por policiais, que muitas vezes não se tratava de resistência ou de confronto com a vítima, e sim, em resumo, de mortes evitáveis, de situações em que as pessoas não estavam em situação de confronto ou em fuga, mas que foram mortos muitas vezes à queima-roupa, em uma situação francamente desigual, sem sequer restar caracterizada a situação de conflito ou ocorrência de crime, que admitisse o uso da violência letal.
O Comitê Contra o Genocídio da Juventude Negra, Pobre e Periférica, é uma inciativa que procura transformar essa situação e é integrado por um grande número de entidades, especialmente movimentos sociais e grupos culturais que nasceram e atuam nas periferias urbanas, do Hip Hop, do movimento negro, do GT Juventude da Rede Nossa São Paulo, e que conta com a presença de órgãos como a Defensoria Pública, o Condepe, a pastoral carcerária, entre dezenas de outras. Atuando mais intensamente desde julho de 2012 liderou e articulou uma solicitação de audiência com o Secretário da Segurança Pública e os altos comandos das polícias do estado de São Paulo para pedir explicações e fazer um conjunto de reivindicações em relação aos terríveis acontecimentos dos últimos meses do ano passado e do início deste, quando centenas de jovens foram mortos. Jovens em sua maioria negros e pobres da periferia de São Paulo e dos municípios do entorno.
A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo é o local onde estava previsto acontecer a audiência pública para debater questões relacionadas às políticas de segurança no estado de São Paulo e ações de combate ao genocídio da juventude negra, nesta última terça-feira (19/3), a partir das 17h. Contudo, a esperada presença de representantes da Secretaria Estadual de Justiça e dos comandos, corregedorias e ouvidorias das polícias Civil e Militar do estado não ocorreu, inviabilizando uma audiência pública que havia sido previamente negociada e combinada.
Para estas organizações, o termo genocídio, utilizado em caso de execução sistemática de uma etnia específica, é o que melhor define a ação violenta de agentes de segurança do Estado contra jovens negros das periferias nos últimos anos, refletida em índices bastante preocupantes.
A Campanha vem conversando com instituições como a Defensoria Pública de São Paulo, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e a Pastoral Carcerária e reunindo dados, informações e denúncias que mostram a gravidade do problema. De acordo com estas organizações, 2.262 pessoas foram mortas em supostos confrontos com a polícia entre 2006 e 2010. São mais de 450 mortes a cada ano. Do total de vítimas de intervenções legais, 77,3% são jovens entre 15 e 29 anos de idade, sendo 54% negros (pretos e pardos). Na cidade de São Paulo, 93% de casos de morte por policiais acontecem nas periferias.
De acordo com membros do Comitê Contra o Genocídio da Juventude Negra, o objetivo central da atividade é cobrar o poder público e exigir dele uma resposta para impedir a continuidade de crimes cometidos pelos próprios agentes do Estado, por meio de suas polícias, sob a alegação de combate ao crime organizado.
A carta encaminhada pelo Comitê ao Secretário de Segurança Pública do Estado traz uma avaliação dos acontecimentos e um conjunto de reivindicações e pedidos de respostas ao Estado, como a exigência da responsabilização dos agentes que estiveram envolvidos.
O documento que o Comitê apresentaria na audiência pública, de ontem, às 17.30hs, na USP, Largo São Francisco, se divide em seis eixos, cada qual acompanhado de informações graves organizadas com seriedade e farta documentação e reivindicações específicas. Seguem as reivindicações expressas na Carta:
1.      Sobre o Racismo Institucional:
Que seja feito mapeamento racial de mortes e o combate efetivo ao racismo no Estado.
Que sejam efetivadas as políticas públicas ao povo negro e que finalmente seja reconhecida a necessidade de reparação histórica.
2.      Sobre as Mortes de Civis:
Que todos os casos de mortes de civis por policiais sob alegação de confronto sejam registrados e investigados como “Homicídios causados pela ação policial”.
Que sejam recuperados e renominados todos os casos que foram classificados no passado como “Auto de resistência” ou “resistência de seguida de morte”, para se adequar a acertada Resolução, denominando-os adequadamente nos Inquéritos e processos como “homicídio”, para que sejam investigados e apurados como tal.
Que os dados oficiais sobre homicídios causados pela ação policial sejam levantados com a devida urgência, recuperando e inserindo-se os casos que foram classificados como “Auto de resistência” ou “resistência de seguida de morte” e os que passaram a ser classificados como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”, para que sejam publicados regularmente pelo poder executivo do Estado, de modo que qualquer cidadão tenha acesso a essas informações.
Que a Pesquisa de Vitimização seja publicizada ao mesmo passo que é atualizada, para que a população tenha acesso às informações. Nela devem constar dados sobre a letalidade policial, evidenciando locais aonde há maior ocorrência de letalidade.
Que as investigações com suspeitas de envolvimento de policiais sejam imediatas, efetivas, aprofundadas, independentes e imparciais, com resultados públicos e publicizados sobre os resultados, ocorrendo-se de acordo com os parâmetros internacionais de direitos humanos.
Garantir o respeito dos direitos humanos e liberdades fundamentais na execução do trabalho dos órgãos e agentes de segurança pública de acordo com os marcos legais nacionais e internacionais de direitos humanos.
Que se comprometa com o reconhecimento do direito das vítimas e familiares de vítimas da violência e arbitrariedade policial, prioritariamente letal, à uma reparação adequada, efetiva e imediata.


3.      Sobre os Poderes Executivo, Judiciário e os Mecanismos de Controle Social:
Que sejam criadas em âmbito estadual comissões permanentes compostas por órgãos públicos pertinentes, sociedade civil e acadêmicos especializados sobre o tema, para conhecer e monitorar a letalidade policial.
Que ministérios públicos estaduais registrem todos os casos de mortes de civis por policiais em alegado confronto como Homicídios causados pela ação policial e que também disponibilizem para o acesso público em suas páginas eletrônicas dados oficiais relativos a sua atuação nessas ocorrências.
Que se constitua mecanismos efetivos visando-se impedir e paralizar as intervenções políticas nas investigações em que sejam os agentes policiais réus.
Que a Corregedoria seja composta por profissionais independentes, sejam eles civis ou por meio da criação de uma carreira própria dentro da policia.
Que seja regularizada a situação da Ouvidoria das Policiais, com a nomeação de Ouvidor/a dentre os nomes constantes da lista tríplice enviada pelo CONDEPE em meados de 2012.
Que haja o fortalecimento da Ouvidoria, a partir da atribuição de corpo próprio de funcionários e autonomia administrativa e financeira, contribuindo para maior efetividade na sua atuação, além da publicização do tipo de punições em seus relatórios.
Que se crie ou reformule os canais de denúncia para dar a segurança necessária para a população e que seja feita uma ampla campanha de estímulo e orientação aos denunciantes.
Fortalecimento da Comissão Especial para a Redução de Letalidade, com a participação de outros setores da sociedade civil, como o Movimento Negro, e outros de defesa de Direitos Humanos, contando com a presença da Defensoria Pública. A comissão deve apresentar à sociedade um Plano de Redução da Letalidade, cujo monitoramento deve ser publicizado para garantir o controle social e deve ter acesso a todas as ocorrências de ação policial com resultado letal, com a data, horário, local dos fatos e transcrição do histórico.
Que os (IML) Institutos Médico Legais, órgãos e responsáveis pelas perícias investigativas no Brasil sejam independentes da polícia, e dotadas de autonomia financeira e técnica, reforçando-se o seu controle externo. 


4.      Sobre a Apuração de Grupos de Extermínio:
O reconhecimento da existência ou de indícios de existência de Grupos de Extermínio dentro da Polícia pelo Governo do Estado de São Paulo.
Uma ampla investigação pelo Ministério Público em colaboração com a Polícia Federal, a respeito dos Grupos de Extermínio, e o desenvolvimento de um conjunto de ações com a finalidade de eliminar a existência desses aparatos, sendo divulgados à população nos próximos anos os resultados desse trabalho.


5.      Sobre a Desmilitarização da Polícia e uma nova política de segurança pública:
A desmilitarização das Polícias
Plano de Segurança Pública, construído com a participação da população e de órgãos ligados aos direitos humanos, capaz de integrar as necessidades sociais da população, a fim de reduzir a violência.
O fim da ROTA, órgão policial amplamente denunciado e reconhecidamente letal e violento.


6.      Sobre Encarceramento:
Adoção de todas as medidas adequadas à redução da população privada de liberdade neste Estado que mais prende pessoas no país, e interrupção da construção de novos presídios e unidades de internação, realocando o investimento à redução das condições de alta vulnerabilidade que atingem as pessoas egressas do sistema carcerário e socioeducativo;
Que os dados sobre “mortes” no interior das unidades prisionais e socioeducativas do Estado, sobre “mortes” das pessoas egressas destes sistemas, incluindo-se os adolescentes em cumprimento de liberdade assistida, sejam sistematizados e publicizados em sistema via web, para ser acessível a qualquer cidadão;
Apoio do Governo deste Estado à rejeição e retirada de toda e qualquer proposta de redução da maioridade penal ou do aumento do tempo de internação, por parte do poder legislativo federal;
Apuração das condições degradantes das prisões e unidades de internação paulistas;
Investigação das razões pelas quais, apesar das dotações orçamentárias, os produtos de higiene não chegam a população carcerária;
Criação do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do Estado de São Paulo, em observância ao Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas;
Fim da Revista Vexatória e apuração de responsabilidades;
Rejeição de toda e qualquer proposta de privatização do sistema prisional e socioeducativo;
Criação da Ouvidoria Externa do Sistema Prisional, garantidos todos os mecanismos de participação popular a ela inerentes.

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*Professor da PUC-SP, colaborador da Pastoral Fé e Política e da Escola de Governo de São Paulo

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