Presidenta Dilma visita e homenageia Cardeal
Arns
A presidente Dilma Rousseff visitou, no final da tarde de hoje (18), o
cardeal Paulo Evaristo Arns. Foi um encontro rápido, reservado e, sobretudo,
simbólico. Dois dias após ter instalado a Comissão da Verdade, o objetivo da
chefe de Estado era homenagear o arcebispo emérito de São Paulo por seu trabalho
à frente da histórica pesquisa Brasil Nunca Mais.
Realizada entre 1979 e 1985, a pesquisa reuniu e organizou 707 processos do Tribunal Superior Militar. O resultado, um extenso documento sobre torturas e outras violações de direitos humanos ocorridas no período do regime militar, é apontado por especialistas como precursor da Comissão da Verdade.O cardeal Arns pertence à Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis. Tem 90 anos e, com saúde debilitada, vive praticamente recluso em uma residência mantida pelas irmãs franciscanas na periferia de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo.
O encontro estava marcado para as 16h15, mas Dilma chegou com quase uma hora de atraso. Os dois conversaram no andar térreo da casa das irmãs, acompanhados pelo secretário geral da Presidência, o ex-seminarista Gilberto Carvalho. Passados pouco mais de 40 minutos, Dilma deixou a residência.
Na saída, desceu o vidro do automóvel e, sorridente, acenou para um pequeno grupo de moradores do Parque Monte Alegre que a aguardava na rua. D. Paulo se manteve no interior da casa. Segundo uma das irmãs que o assistem, ficou cansado e se retirou logo para seus aposentos. O Planalto não divulgou detalhes da conversa. Em comentário não oficial, um assessor da Presidência qualificou o encontro como histórico.
Desde 2007, o franciscano vive numa pequena congregação na região
metropolitana de São Paulo. Irmã Devanir de Jesus, amiga de convivência diária,
conta que o cardeal optou por descansar com a sensação de dever cumprido. É uma
pessoa iluminada. De fácil cuidado e muito gentil. Eu cresço a cada momento que
convivo com ele. O aposentado cardeal não concede mais entrevistas, não vai a
debates nem eventos o que inclui celebrações de seus 90 anos, completados em
14 de setembro. A imagem de São Francisco de Assis à entrada dá as boas-vindas e
parece explicar que a opção de seu mais famoso e fiel devoto é merecida e
necessária. Dom Paulo, como frei franciscano, teve espírito de despojamento, de
simplicidade de vida e de uma inteligência privilegiada, conta o amigo dom
Pedro Stringhini, bispo de Franca.
A infância em Forquilhinha (SC) forjou o homem que mais tarde se
transformaria em pedra no sapato da ditadura. A fé da mãe, Helena, e o espírito
conciliador do pai, Gabriel, são vistos pelo cardeal como pilares de sua
formação. Quando estava para ingressar no seminário, o menino recebeu do pai o
pedido: Papai é colono, e você, mesmo depois de estudar muito, sempre será
filho de colono e de seu povo. Dom Paulo levou isso na cabeça nos 12 anos de
estudos, após a ordenação, em 1945, e na pós-graduação na Universidade de
Sorbonne, na França. Na Europa pós-guerra, a desigualdade social se alastrava.
Dom Paulo deparou com a realidade dos que lutaram e com as cicatrizes da
intolerância nazista. As marcas do conflito arraigaram ainda mais em Paulo
Evaristo a conduta humanista que o guiaria pela vida.
No retorno ao Brasil, antes da chegada a São Paulo, trabalhou em comunidades
carentes de Petrópolis (RJ) durante dez anos. Em julho de 1966, se apresentava à
metrópole acinzentada, que crescia e empurrava para as bordas a massa de
migrantes. A Igreja Católica, com o Concílio Vaticano II, reinseria a realidade
das mazelas do mundo na vida clerical. Emergia a Teologia da Libertação, que
preconiza uma opção preferencial pelos pobres e a consciência das massas
ensinar a pescar como meio de reagir à opressão. Ao mesmo tempo, a força das
armas produzia as ditaduras no Cone Sul.
Quando assumiu a Arquidiocese de São Paulo, em 1970, o franciscano de cara
deu recados. Vendeu o Palácio Pio XII, residência oficial do arcebispo, para
financiar terrenos e construir casas na periferia. Fortaleceu as Comunidades
Eclesiais de Base, que até hoje disseminam pelos bairros as discussões sobre
política, cidadania e, claro, religião. E incentivou as pastorais. O papa Paulo
VI disse a dom Paulo que tivesse uma bela equipe de bispos auxiliares que
deveriam estar perto do povo, conta um desses bispos, dom Angélico Sândalo
Bernardino, chamado em 1974.
Eram quatro bispos auxiliares, um para cada região da cidade. Dom Angélico
recebeu a incumbência de cuidar da Pastoral Operária, criada quatro anos antes.
E se tornaria mais tarde o bispo dos operários.
A amizade com Paulo VI renderia ao Brasil algo mais que recomendações
episcopais: toda vez que algum religioso estivesse em risco, dom Paulo ia ao
Vaticano. Todo mundo municiava dom Paulo com informações sobre o que estava
acontecendo porque sabia que ele era ouvido aqui e fora, diz o amigo Paulo
Cesar Pedrini, da Pastoral Operária.
No fim da década de 1970, bispos ligados à conservadora corrente Tradição,
Família e Propriedade (TFP) pediram ao governo que expulsasse do Brasil dom
Pedro Casaldáliga, bispo espanhol da Prelazia de São Félix do Araguaia,
acusado de ser comunista. O cardeal viajou a Roma, e Paulo VI mandou o recado:
Mexer com Pedro é mexer com o papa, versão da história confirmada pelo próprio
Casaldáliga.
Waldemar Rossi lembra quando foi chamado por dom Paulo. Meses após a criação
da Pastoral Operária, o franciscano queria saber do metalúrgico: os integrantes
eram a favor da luta armada? Nós temos o direito de nos organizar para defender
nossos direitos?, perguntou-lhe Rossi. É um dever, ouviu. Estamos fazendo.
Na hora em que a gente estava ganhando força, vem a ditadura e mata...,
prosseguiu. E o cardeal encerra a conversa: Aí, vocês têm o direito da legítima
defesa. Rossi passaria a ser um amigo fiel do arcebispo.
Três anos mais tarde, foi preso. Sua mulher procurou dom Paulo, o crime foi
denunciado nas paróquias de São Paulo e no exterior. Os militares queriam
parecer bonzinhos, então ficavam furiosos quando alguma coisa transpirava para o
exterior, lembra Margarida Genevois. Essa arma a gente utilizou bastante.
Rossi, um dos fundadores da Pastoral Operária, ficou na sede do Departamento de
Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo. Dom Paulo promovia caminhadas ao
redor do Dops, até que, no 25º dia da prisão, entrou no prédio, não tomou
conhecimento dos protestos em contrário e foi à sala do delegado. Vocês
torturaram esse homem. Ele não consegue andar direito, acusou, logo que foi
autorizado a ver o prisioneiro, que tinha também o defeito de liderar a
oposição ao comando do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, há anos submisso
a militares e patrões.
Não era a primeira vez que ele batia de frente com o inimigo. Não seria a
última. Dom Paulo foi abrindo caminho, conta dom Angélico, ao lembrar da
chegada ao Instituto Médico Legal (IML) em 30 de outubro de 1979. Lá estava o
corpo do operário Santo Dias da Silva cujo desaparecimento só não aconteceu
porque sua mulher, Ana Dias, entrou à força no carro dos policiais que o
transportaram. Depois de discutir com a PM para que libertasse os militantes
presos por organizar uma greve não apoiada pelo sindicato, o metalúrgico foi
baleado nas costas diante de uma fábrica na zona sul paulistana. Dom Paulo saiu
de casa com todos os trajes episcopais e chegou dizendo: Abram a porta. É o
arcebispo de São Paulo. Foi aonde estava o corpo e pôs o dedo na bala,
indicando o ferimento feito por um policial, relembra o padre Júlio
Lancelotti.
Da Rua da Consolação até a Catedral da Sé, milhares de pessoas se reuniram em
protesto. Foi um grito de dor, de denúncia, lembra Ana, que anos mais tarde
soube que o cardeal encomendara um caixão mais resistente para que os
companheiros pudessem cumprir o desejo de transportar o corpo de Santo pelas
ruas de São Paulo. Como sua família não aceitava sua opção pela militância, Ana
contou muito com o auxílio do amigo. Dom Paulo foi meu pai. Pai de verdade, e
não um pai ausente.
A Cúria Metropolitana, localizada no Bairro Higienópolis, já era uma
referência no enfrentamento à repressão. O arcebispo articulara a criação da
Comissão Justiça e Paz, que denunciava as prisões ilegais e as torturas, dava
suporte aos familiares e pressionava os militares. Comecei atendendo um dia por
semana. Depois, dois, três. No fim, atendia todos os dias, de manhã e de tarde,
conta Margarida Genevois, que integrou a comissão durante 25 anos e chegou a
presidi-la. A fama do arcabouço protetor criado na arquidiocese cresceu e já
atraía perseguidos da Argentina, do Chile, Paraguai e Uruguai. Os militares
reclamavam da intromissão da Igreja brasileira, e dom Paulo rebatia: A
solidariedade não tem fronteiras.
Santiago, Chile, 1979. O Clamor, grupo de defesa dos direitos humanos criado
em São Paulo com olhos na América Latina, atingia um de seus pontos altos. Sob a
proteção do cardeal, a jornalista inglesa Jan Rocha, o advogado Luiz Eduardo
Greenhalgh e o pastor presbiteriano Jaime Wright arquitetaram a primeira missão
de resgate de crianças sequestradas pela ditadura argentina (1976-1983). Anatole
e Vicky, cujos pais, uruguaios, foram mortos em Buenos Aires, viviam na capital
chilena quando foram localizados pelo grupo. Até hoje, as Avós da Praça de Maio
recuperaram o destino de mais de cem netos raptados, história que teve início
sob influência e guarida de dom Paulo e do Conselho Mundial de Igrejas.
A aproximação entre o cardeal e o CMI, que reúne igrejas protestantes, foi
realizada por Wright. O pastor despertou para a luta contra a ditadura após a
morte do irmão, Paulo, em 1973, e logo se transformou em grande amigo de Arns.
Sempre brincavam que um parecia um presbiteriano disfarçado de católico e o
outro parecia um católico disfarçado de presbiteriano, lembra Anita Wright,
acostumada a ver o pai viajar intensamente e hospedar em casa refugiados que
batiam à porta do Clamor. O CMI passou a custear as operações de salvação de
pessoas e, mais tarde, seria fundamental para o projeto Brasil Nunca Mais.
A ditadura caminhava para o final, e o sinal de alerta acendeu. Consegui que
o Conselho Mundial de Igrejas financiasse o projeto, desde que eu obtivesse o
aval de dom Paulo, conta a advogada Eni Moreira, idealizadora do Brasil Nunca
Mais, para que episódios de destruição de arquivos, como vistos em outros
períodos autoritários, não se repetissem. Entre 1979 e 1985, um grupo restrito
de advogados valeu-se do direito de retirar processos arquivados no Superior
Tribunal Militar, em Brasília, e montou um quadro sistemático da repressão
promovida nos 15 anos anteriores. O guarda-chuva de dom Paulo nos dava certa
tranquilidade, admite Eni. Seis anos depois, vinha à tona o livro Brasil Nunca
Mais, com relatos dos métodos de tortura, as acusações ilegais e os crimes
promovidos pelo regime informação que, saída de seus arquivos, nunca pôde ser
contestada pelos repressores.
Dom Paulo jamais acreditou na versão de que o jornalista Vladimir Herzog, o
Vlado, houvesse cometido suicídio na cela em que estava detido, no DOI-Codi,
outro aparelho da ditadura. A missa de sétimo dia da morte de Vlado, em 1975,
ato ecumênico que atraiu milhares de pessoas até a Catedral da Sé,
transformou-se em um momento simbólico, possivelmente o início do fim dos anos
de chumbo. Lembro do meu pai relatando a agonia de tentar chegar na catedral,
porque havia bloqueios policiais nas vias de acesso, conta Anita sobre a saga
de Wright, representante presbiteriano na celebração.
Padre Júlio, da Pastoral do Povo da Rua, relembra um episódio em que um grupo
de moradores de rua estava na iminência de passar mais uma noite fria do inverno
paulistano debaixo de um viaduto. A Prefeitura de São Paulo, então administrada
por Paulo Maluf, havia fechado um abrigo e, naquela noite, dom Paulo disse que
dormiria no local enquanto não fosse reaberto. Eu o convidei e ele foi até o
Viaduto do Glicério, no centro de São Paulo, onde os moradores de rua estavam. E
aí foi um esparramo. Imagine só, o arcebispo embaixo de um viaduto.
Depois de 28 anos à frente da Arquidiocese de São Paulo, dom Paulo renunciou
por questão de idade em 1998, aos 77. Recebeu da Igreja o título de arcebispo
emérito e, dos operários, o de cardeal dos trabalhadores. Após alguns anos
vivendo no Jaçanã, zona norte, retirou-se para a congregação em Taboão da Serra.
Hoje, ao acordar, lê jornais e em seguida faz uma celebração diária aos
moradores da comunidade religiosa onde vive. Com apoio de uma bengala, faz uma
leve caminhada pelo jardim e segue para o almoço. Nos últimos anos, optou por
não assistir à televisão, mas dizem as boas línguas que a carne é fraca para uma
única paixão: dar uma espiadela de nada na TV quando joga o Corinthians.
Obviamente, não assume e atribui o vacilo às freiras corintianas por obra e
graça do próprio.
No começo deste ano, quando esteve internado, dom Paulo convocou ao hospital
dom Angélico: queria que o amigo rezasse a missa. Ao final da celebração, na
cama da Unidade de Terapia Intensiva, aproveitou a hora do abraço para
sussurrar: Confiança. Vamos avante. De esperança em esperança. Na esperança
sempre. Para o cardeal dos trabalhadores, pode-se desanimar, sofrer, esmorecer,
mas desistir jamais. A esperança não é o ópio do povo, mas o motor que modifica
o mundo.
Fonte: Pascom Região Lapa/ Site do Governo Federal
A partir de Jesus Cristo, em busca do bem comum
Realizada entre 1979 e 1985, a pesquisa reuniu e organizou 707 processos do Tribunal Superior Militar. O resultado, um extenso documento sobre torturas e outras violações de direitos humanos ocorridas no período do regime militar, é apontado por especialistas como precursor da Comissão da Verdade.O cardeal Arns pertence à Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis. Tem 90 anos e, com saúde debilitada, vive praticamente recluso em uma residência mantida pelas irmãs franciscanas na periferia de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo.
O encontro estava marcado para as 16h15, mas Dilma chegou com quase uma hora de atraso. Os dois conversaram no andar térreo da casa das irmãs, acompanhados pelo secretário geral da Presidência, o ex-seminarista Gilberto Carvalho. Passados pouco mais de 40 minutos, Dilma deixou a residência.
Na saída, desceu o vidro do automóvel e, sorridente, acenou para um pequeno grupo de moradores do Parque Monte Alegre que a aguardava na rua. D. Paulo se manteve no interior da casa. Segundo uma das irmãs que o assistem, ficou cansado e se retirou logo para seus aposentos. O Planalto não divulgou detalhes da conversa. Em comentário não oficial, um assessor da Presidência qualificou o encontro como histórico.
Guerreiro incansável na luta pela justiça.
Dedicação do cardeal dos trabalhadores transcendeu a
Igreja, salvou vidas e mexeu com a história do país. Dom Paulo simboliza o valor
da resistência e da esperança
Por: João Peres e Virginia Toledo
Dom Paulo Arns abrindo
caminho para o corpo do operário Santo Dias da Silva, morto pela polícia em
1979, e que a ditadura queria esconder (foto: Eduardo Simões) De
esperança em esperança, Dom Paulo Evaristo Arns completa 90 anos com a mesma
certeza que tinha aos 20: a solidariedade e a busca da justiça e da paz como
razão de viver. Os arredores da morada de dom Paulo emanam serenidade. A mesma
com que enfrentou tiranos de plantão no poder e lutou pelas causas dos
desfavorecidos.
Abra-se o caminho
Discurso cortadoNa noite de 3 de
julho de 1980, Waldemar Rossi havia sido encarregado por dom Paulo de ler ao
papa João Paulo II uma carta com denúncias de trabalhadores sobre violações a
seus direitos. O Exército, responsável pelas credenciais, levantou a ficha do
fundador da Pastoral Operária e decretou que contumaz comunista não
participaria da celebração. Dom Paulo o pôs para dentro e, como chovia e o papa
estava atrasado, pediu a Rossi que encurtasse o discurso lesse apenas o
primeiro e o último parágrafo. Ainda assim, foi adiante a denúncia da morte de
Santo Dias e de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo trabalhador rural também
assassinado pela repressão, dois meses antes, no sul do Pará. Quando 130 mil
pessoas bradavam liberdade!, o papa precisou da ajuda do cardeal para entender
o que se passava. Foi o momento mais forte do encontro, lembra Rossi.
O bico do condor
Debaixo do viaduto
Fonte: Pascom Região Lapa/ Site do Governo Federal
Pastoral Fé e
Política
A partir de Jesus Cristo, em busca do bem comum
Arquidiocese de São Paulo
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