A validação pelo STF da eleição de um senador do Pará, nas eleições de 2010, que havia sido impugnado com base na chamada Lei da Ficha Limpa, propõe-nos o tema mais amplo da legitimidade dos mandatos e da relação entre a sociedade e o Estado. Ainda que extraviada nos casuísmos interpretativos, nascida de um projeto de iniciativa popular e, portanto, de um movimento social, a Lei da Ficha Limpa é uma das expressões do poder subjacente da sociedade civil em face do poder do Estado. Impõe-lhe regulação e limite. Torna-se coadjuvante do Legislativo quando os que têm mandato não reúnem as condições para viabilizar a proposição e aprovação de uma lei socialmente necessária.
Em si mesma, a Lei da Ficha Limpa representa o pleito da sociedade civil para que eleições não sejam interpretadas pelos políticos como renúncia ao direito cidadão de vigiar e regular o modo como a representam. Filtra moralmente a atribuição de mandatos. A Lei da Ficha Limpa cria condições e limitações morais à apresentação de candidaturas maculadas previamente por atos incompatíveis com a lisura de quem deva falar, votar e decidir em nome do povo. Essa lei instituiu a precedência cidadã da biografia limpa.
Desde então, no entanto, certa inquietação quanto ao exato critério da aplicação da lei tem posto o País diante da suposição de que antes da lei não era necessário ser honesto, só depois dela. Ainda assim, com prazo de carência de um ano para adoção da honestidade como medida de honradez política. Esse não é o espírito da lei proposta. Transfere-se, pois, para o Judiciário a tarefa de decidir a data de inauguração da honestidade política no país. Tarefa difícil, como se vê na Suprema Corte dividida, a ponto de ter sido necessário que seu presidente votasse como duas pessoas, exercendo o direito do voto de qualidade para desempatar a pendência.
Isso, porém, não resolve o problema dos mandatos decididos no finalmente da Justiça, interrompidos uns e inaugurados tardiamente outros. Se a questão da legalidade das decisões é meramente numérica, no sai um e entra outro a questão de sua legitimidade é bem diversa. Ver-se-á isso agora: sai a senadora classificada em quarto lugar na votação do eleitorado do Pará e entra o senador classificado em segundo lugar, que teve quase três vezes mais votos do que ela. Uma e outro pertencentes a partidos ideologicamente opostos. Ela, no seu mandato, agora considerado indevido, deu votos, certamente, contrários aos que teria dado o agora devidamente eleito. Nos casos em que esses votos possam ter sido decisivos, aquilo que foi aprovado não o teria sido. A maioria, portanto, é uma ficção, o que alimenta a dúvida sobre a seriedade das leis: alguém é obrigado a cumprir uma lei sobre a qual pese essa dúvida de origem e de legitimidade?
No âmbito do Judiciário, outro processo pendente e correlato é o do mensalão. Um dos ministros da Corte Suprema alertou há alguns dias para o risco da prescrição próxima de alguns dos crimes envolvidos na denúncia. O processo se arrasta há quatro anos e o ministro que o examina, afastado do Tribunal por motivo de saúde, ainda não ofereceu a seus colegas o seu voto nem dispõem eles de cópia do volumoso processo para se adiantarem em sua leitura e prepararem sua decisão. Ao fim e ao cabo, há o risco de que a cegueira simbólica da Justiça venha a ser de outra natureza.
A demora, porém, não modificará o aspecto mais problemático desse caso. Segundo indicavam as pesquisas eleitorais de 2006, o presidente da República não seria reeleito justamente em decorrência do caso rumoroso. No entanto, foi-o. O Bolsa Família, analisa o então porta-voz do governo, em estudo recente, assegurou que a opinião eleitoral a ser manifestada nas urnas fosse contrariada pelos benefícios dessa política. Que foi, de fato, de estatização do coronelismo conformista do voto-de-cabresto. Com o Bolsa Família, o governo Lula deu um golpe magistral na tradição iníqua e antidemocrática do voto de sujeição nos ermos e periferias do País. Literalmente, desapropriou dos régulos e mandões de província uma base eleitoral dócil e vulnerável de 40 milhões de eleitores. A gratidão e o medo de perder o benefício fácil atrela-os, agora, ao continuísmo oficial, tudo feito dentro das normas limpas e higiênicas da lei. Mas a medida tem o seu preço, ao comprometer a rotação do poder entre os partidos e a possibilidade de que a gente diferençada, como virou moda dizer, mantenha a sua hegemonia política como autora do voto livre e supostamente esclarecido.
A Lei da Ficha Limpa não alcança essa iniquidade política e seus correlatos efeitos eleitorais, pois não se trata de desonestidade no sentido estrito do termo. A demora no julgamento do mensalão e a relutância em relação à Ficha Limpa apenas retardam a depuração da política brasileira de seus vícios e manias. Demora que estende o Carnaval muito além dos três dias de farra que antecedem as penitências da nossa já longa Quaresma política.
Em si mesma, a Lei da Ficha Limpa representa o pleito da sociedade civil para que eleições não sejam interpretadas pelos políticos como renúncia ao direito cidadão de vigiar e regular o modo como a representam. Filtra moralmente a atribuição de mandatos. A Lei da Ficha Limpa cria condições e limitações morais à apresentação de candidaturas maculadas previamente por atos incompatíveis com a lisura de quem deva falar, votar e decidir em nome do povo. Essa lei instituiu a precedência cidadã da biografia limpa.
Desde então, no entanto, certa inquietação quanto ao exato critério da aplicação da lei tem posto o País diante da suposição de que antes da lei não era necessário ser honesto, só depois dela. Ainda assim, com prazo de carência de um ano para adoção da honestidade como medida de honradez política. Esse não é o espírito da lei proposta. Transfere-se, pois, para o Judiciário a tarefa de decidir a data de inauguração da honestidade política no país. Tarefa difícil, como se vê na Suprema Corte dividida, a ponto de ter sido necessário que seu presidente votasse como duas pessoas, exercendo o direito do voto de qualidade para desempatar a pendência.
Isso, porém, não resolve o problema dos mandatos decididos no finalmente da Justiça, interrompidos uns e inaugurados tardiamente outros. Se a questão da legalidade das decisões é meramente numérica, no sai um e entra outro a questão de sua legitimidade é bem diversa. Ver-se-á isso agora: sai a senadora classificada em quarto lugar na votação do eleitorado do Pará e entra o senador classificado em segundo lugar, que teve quase três vezes mais votos do que ela. Uma e outro pertencentes a partidos ideologicamente opostos. Ela, no seu mandato, agora considerado indevido, deu votos, certamente, contrários aos que teria dado o agora devidamente eleito. Nos casos em que esses votos possam ter sido decisivos, aquilo que foi aprovado não o teria sido. A maioria, portanto, é uma ficção, o que alimenta a dúvida sobre a seriedade das leis: alguém é obrigado a cumprir uma lei sobre a qual pese essa dúvida de origem e de legitimidade?
No âmbito do Judiciário, outro processo pendente e correlato é o do mensalão. Um dos ministros da Corte Suprema alertou há alguns dias para o risco da prescrição próxima de alguns dos crimes envolvidos na denúncia. O processo se arrasta há quatro anos e o ministro que o examina, afastado do Tribunal por motivo de saúde, ainda não ofereceu a seus colegas o seu voto nem dispõem eles de cópia do volumoso processo para se adiantarem em sua leitura e prepararem sua decisão. Ao fim e ao cabo, há o risco de que a cegueira simbólica da Justiça venha a ser de outra natureza.
A demora, porém, não modificará o aspecto mais problemático desse caso. Segundo indicavam as pesquisas eleitorais de 2006, o presidente da República não seria reeleito justamente em decorrência do caso rumoroso. No entanto, foi-o. O Bolsa Família, analisa o então porta-voz do governo, em estudo recente, assegurou que a opinião eleitoral a ser manifestada nas urnas fosse contrariada pelos benefícios dessa política. Que foi, de fato, de estatização do coronelismo conformista do voto-de-cabresto. Com o Bolsa Família, o governo Lula deu um golpe magistral na tradição iníqua e antidemocrática do voto de sujeição nos ermos e periferias do País. Literalmente, desapropriou dos régulos e mandões de província uma base eleitoral dócil e vulnerável de 40 milhões de eleitores. A gratidão e o medo de perder o benefício fácil atrela-os, agora, ao continuísmo oficial, tudo feito dentro das normas limpas e higiênicas da lei. Mas a medida tem o seu preço, ao comprometer a rotação do poder entre os partidos e a possibilidade de que a gente diferençada, como virou moda dizer, mantenha a sua hegemonia política como autora do voto livre e supostamente esclarecido.
A Lei da Ficha Limpa não alcança essa iniquidade política e seus correlatos efeitos eleitorais, pois não se trata de desonestidade no sentido estrito do termo. A demora no julgamento do mensalão e a relutância em relação à Ficha Limpa apenas retardam a depuração da política brasileira de seus vícios e manias. Demora que estende o Carnaval muito além dos três dias de farra que antecedem as penitências da nossa já longa Quaresma política.
*José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de
Filosofia da USP.
Publicado em O Estado de S. Paulo
[Caderno Aliás, A Semana Revista],
Domingo, 18 de dezembro de 2011, p. J3.
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